domingo, 7 de julho de 2013

Pauta prioritária faz Câmara e Senado baterem cabeça



Após protestos, parlamentares analisam projetos similares de autores diferentes, o que atrasa a tramitação. Fim do voto secreto e do foro privilegiado e a corrupção como crime hediondo são exemplos
Lia de Paula/Agência Senado
Nas manifestações, pedidos pelo fim do voto secreto nas votações no Congresso
A pauta prioritária estabelecida pelos presidentes da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), está fazendo deputados e senadores baterem cabeça para dar respostas à população após as recentes manifestações pelo país. Sob acusação de falta de coordenação e até de liderança, as duas Casas devem colocar em votação propostas com conteúdo similar, mas elaboradas por diferentes autores. Na prática, isso atrasa a tramitação e pode resultar numa demora maior para as mudanças entrarem em vigor.
Desde que aproximadamente 50 mil pessoas, em três dias diferentes, protestaram em frente ao Congresso pedindo a derrubada da PEC 37, mais recursos para saúde, o fim do voto secreto nas votações no Congresso e mais uma série de outras reivindicações, deputados e senadores elaboraram o que classificaram como pautas prioritárias. Nas duas Casas, a frase mais repetida era a necessidade de “ouvir a voz das ruas”. Até agora, pelo menos 13 projetos foram aprovados e um derrubado. Do total, quatro já foram para sanção presidencial, enquanto as outras aguardam votação.
Veja a lista de projetos já aprovados e em tramitação
Porém, não houve uma pauta conjunta elaborada por Henrique Alves e Renan, cada Casa fez a sua. Um exemplo é o projeto que torna a corrupção crime hediondo. Em 26 de junho, o Senado aprovou uma proposta, de autoria do senador Pedro Taques (PDT-MT). No entanto, o texto demorou para ser enviado à Câmara. Deputados, então, escolheram outro projeto, apresentado em 2009 pelo então presidente Lula, cuja urgência foi aprovada na terça-feira (2). “Esta proposta é mais ampla”, defendeu o líder do PT, José Guimarães (CE).
Liderança
O projeto apresentado pelo Executivo em 2009 está apensado a outros oito. O principal, de autoria do ex-deputado Wilson Santos, foi rejeitado por duas comissões da Câmara no passado. No entanto, com a pressão dos protestos, os deputados mudaram de posição. Um novo relator será indicado. Ele terá a missão de elaborar um substitutivo com todas as proposições para apresentar no plenário.
“As Casas são autônomas e constroem suas próprias agendas. O Senado tem a sua pauta, nós vamos construir a nossa pauta independente da pauta do Senado”, completou o petista. A declaração de Guimarães dá uma mostra de como, nos temas mais pedidos durante as manifestações, fica latente a falta de coordenação entre deputados e senadores. E o caso da corrupção como crime hediondo não é o único.
Para o cientista político da Universidade de Brasília (UnB) David Fleischer, o problema é outro. Ele entende que o Congresso sofre de uma crise de lideranças. O especialista acredita que nem Renan e Henrique Alves possuem legitimidade para elaborar e conseguir levar adiante uma pauta conjunta entre as duas Casas. “Se o Congresso tivesse um líder de verdade, era possível evitar as questões”, afirmou.
“Gostasse ou não, o ex-senador Antonio Carlos Magalhães conseguiria. Era um líder na força bruta, mas conseguiria convencer e elaborar uma pauta comum”, lembrou Fleischer. Mesmo sem uma liderança capaz de reunir Câmara e Senado, o especialista acredita que deputados e senadores têm mostrado que quando há vontade política é possível votar projetos importantes.
Cassação
O fim do voto secreto passa pela mesma situação da corrupção como crime hediondo. Depois de mais de um ano parada, a proposta de emenda à Constituição que prevê o voto aberto para processos de cassação de mandato no Congresso foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Uma semana depois, o Senado aprova outra matéria similar. De autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), acaba com todas as possibilidades de voto secreto no Congresso.
“Eu acho que está havendo uma falta de coordenação entre as duas Casas para organizar os projetos que são votados. Sinto que as matérias enviadas para a Câmara não tem a mesma urgência que tínhamos aqui”, ponderou o senador Randolfe Rodrigues (Psol-AP). Para ele, os presidentes e os líderes precisam conversar para evitar que “vire bagunça” a tentativa de votar tudo em resposta às manifestações.
Foro privilegiado
Outro tema que parte da sociedade pressionava o Congresso para votar, o fim do foro privilegiado para autoridades deve ir à votação na CCJ da Câmara na terça (9) e no plenário do Senado em 16 de julho. No entanto, elas são propostas diferentes. Os deputados vão analisar uma PEC que tramita desde 2005. Com o parecer pela admissibilidade, deve ser finalmente analisado pelos deputados.
Renan marcou para 16 de julho a votação em primeiro turno da PEC 10/2013. De autoria do senador Álvaro Dias, ela prevê a extinção do foro privilegiado para crimes comuns. Para o tucano, é preciso diferenciar os delitos cometidos que decorrem do poder legalmente constituído – o ato de ofício – do peculato, corrupção e homicídio, por exemplo. A urgência da tramitação já foi aprovada pelos senadores.
Na visão do líder do PSB no Senado, Rodrigo Rollemberg (DF), é preciso fazer um “freio de arrumação” e ter racionalidade no processo. “Tá todo mundo querendo responder de forma rápida às manifestações, mas rapidez não é a melhor forma. Precisa ter sessões regulares com pauta importante para os cidadãos e responsável. É preciso racionalidade e bom senso neste momento”, opinou.
As propostas aprovadas pelo Congresso após as manifestações

sábado, 6 de julho de 2013

Para João Pedro Stedile, tempo da reforma clássica passou

Fonte: MCS - reporterbrasil.org.br - Verena Glass | 5 de julho de 2013

João Pedro Stedile, referência do MST. Foto: Verena Glass
João Pedro Stedile, referência do MST. Foto: Verena Glass
Acostumados a protagonizar as manifestações e dar o tom das reivindicações da rua em protesto nos últimos anos, os movimentos sociais tradicionais, como o sindical, o MST, a UNE e a juventude partidária de esquerda não fizeram nem um nem outro na última onda de mobilizações que varreu o país. A multiplicidade de pautas desta última destoou do formato da costumeira organicidade dos primeiros, que participaram, mas acenderam suas luzes amarelas e vermelhas diante da “intensa luta ideológica” detectada na rua, como avaliou João Pedro Stedile, membro da direção nacional do MST.
A nova configuração do “povo na rua” – e, em especial, a presença de setores conservadores – motivou uma série de assembleias dos movimentos sociais (incluindo reuniões com o ex-presidente Lula) na última semana, que resultou na avaliação de que as reivindicações históricas dos trabalhadores teriam que ser reforçadas. Decidiu-se assim por um dia unitário de mobilização no dia 11 de julho, que pretende, ainda de acordo com Stedile, “recolocar a classe trabalhadora como ator político deste processo” com pautas como 10% do PIB para a educação, melhoria do Sistema Único de Saúde e apoio à vinda dos médicos cubanos ao Brasil, redução da jornada de trabalho para 40 horas, contra a PEC 4330 (que institucionaliza o trabalho terceirizado sem nenhum direito), contra os leilões do petróleo, pela reforma agrária e pelo fim do fator previdenciário.
Bandeiras e alianças
Enquanto segue articulado com os parceiros históricos em âmbito urbano, mantendo inalterado seu apoio tático ao governo federal, no campo o MST parece estar reavaliando bandeiras e alianças. Ao menos é o que transpareceu tanto nas avaliações das “bases” do movimento e de seus aliados rurais, quanto nas da direção (mesmo que em diferentes graus) durante um seminário sobre reforma agrária, promovido pelo MST no último fim de semana.

Para diversos integrantes de organizações ligados à Via Campesina, como a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário, o Movimento dos Pequenos Agricultores, e representantes dos movimentos quilombolas e de pescadores, entre outros, houve uma aliança definitiva do governo federal com a pauta ruralista, o que não deixa alternativa além do enfrentamento direto. Já dirigentes do MST, mais ponderados, sustentam a tese de que o governo ainda está em disputa, sendo preciso encontrar uma forma mais eficaz de fazê-la.
Independente desta ou daquela leitura, porém, segundo Stedile a situação no campo se desenha de acordo com os seguintes fatores: o capital (nacional e internacional) se apropriou da agricultura e dos recursos naturais – incluídos aí os recursos minerais, hídricos, a biodiversidade, etc – e impôs sua matriz produtiva, baseada nos monocultivo de commodities, uso intensivo de venenos e concentração das terras. Concomitantemente, apropriou-se do governo e gerencia suas políticas de acordo com sua pauta.
Por outro lado, a classe trabalhadora foi se ausentando do debate político, avalia Stedile. No campo, o MST se manteve mais forte até 2005, quando organizou a última grande marcha pela reforma agrária à Brasília. “A partir daí, recuou. Mesmo as grandes bandeiras civilizatórias, como a pauta indígena, não mobilizam. Foi uma vergonha termos colocado apenas 400 trabalhadores na marcha pelos direitos indígenas no Mato Grosso do Sul”, afirmou o dirigente do MST, em alusão à mobilização que se seguiu ao assassinato do índio Oziel Terena pela Polícia Federal, no final de maio deste ano.
Seminário sobre questão agrária realizado na semana passada reuniu integrantes de movimentos sociais, acadêmicos e especialistas
Seminário sobre questão agrária realizado na semana passada reuniu integrantes de movimentos sociais, acadêmicos e especialistas
Conjuntura
Para Stedile, os movimentos camponeses precisam reconhecer que o tempo da reforma agrária clássica – a que democratiza a terra através de um acordo entre o campesinato e a burguesia – passou. “Não temos força pra isso, e a burguesia não tem interesse. A reforma agrária popular está sofrendo uma mudança paradigmática”, postula Stedile. A conjuntura mudou, continua, e a disputa pela terra deve se transformar em disputa pelo território, significando terra, biodiversidade, florestas, água, recursos naturais, e pelas concepções produtivas e culturais, principalmente no que tange a qualidade e a saúde dos alimentos.

Nesta nova leitura, explicou Stedile, além de retornar ao trabalho de base nas regiões e aprofundar suas alianças com os movimentos de agricultores tradicionais, o MST terá que se integrar a agendas de segmentos, organizações e lutas já consolidadas, como as do semiárido nordestino, da agroecologia, as ambientais e as indígenas, entre outras.
“Temos que participar das lutas da causa indígena. Temos que fortalecer a Articulação do Semi-Árido (ASA), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a campanha do Desmatamento Zero, as lutas dos atingidos pela mineração, e o combate ao trabalho escravo. Não podemos deixar o Sakamoto sozinho com esta bandeira, enfrentando ameaça de fazendeiros”, comentou Stedile, em menção ao trabalho de Leonardo Sakamoto, coordenador da Repórter Brasil.
Por fim, Stedile fez um apelo à academia, outro setor com o qual o movimento quer aprofundar o debate sobre o campo brasileiro: “parem de nos pesquisar. Pesquisem o inimigo, os agrotóxicos, os transgênicos. Precisamos articular novas pesquisas agrárias”.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Proposta de consulta popular sobre reforma política é resposta às cobranças das ruas

A proposta da presidenta Dilma Rousseff de promover a reforma política é uma resposta sobre as cobranças das ruas. Há duas décadas, o Congresso Nacional discute o assunto sem obter consenso. O tema veio à tona devido à pressão das manifestações que ocupam as principais cidades do país, exigindo das autoridades mudanças nas regras eleitorais, melhorias sociais e o fim da corrupção. Como alternativa às cobranças, o governo examina a hipótese de propor um plebiscito ou referendo.
Para as eleições de 2014, as mudanças têm de ser aprovadas até 5 de outubro. Portanto, as autoridades têm apenas três meses para definir a questão sobre a consulta popular. Antes da proposta de Dilma, em abril a Câmara tentou discutir e aprovar medidas referentes à reforma política, sem sucesso.
A alternativa sobre a realização de consulta popular para a reforma política é debatida em reuniões com vários segmentos sociais, no Palácio do Planalto, e divide especialistas, juristas e políticos, assim como várias entidades civis. Nos últimos dias, ganhou força a proposta de promover um plebiscito em setembro. Mas, na Câmara e no Senado, a oposição defende o referendo como instrumento de consulta popular para consolidar as mudanças cobradas nas ruas.
No entanto, os especialistas advertem sobre os gastos, a necessidade de tempo para a organização das consultas e, principalmente, a orientação sobre questões fechadas e claras para a abordagem aos eleitores. Inicialmente, integrantes do governo sugeriram oito perguntas que devem constar da consulta popular. Mas o Congresso Nacional é que definirá as perguntas que constarão da consulta.
'A presidenta vai propor os pontos que ela considera importantes, nós acrescentaríamos os nossos e se faz um plebiscito em torno da reforma política', disse o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). 'Seriam as questões polêmicas da reforma política, as questões pontuais mais importantes para que o povo se manifeste sobre elas.'
Em nota, a oposição composta pelo DEM, o PPS e PSDB apoia a consulta popular, mas condena que as perguntas levem às respostas de sim ou não. 'Somos favoráveis à consulta popular, mas não sob a forma plebiscitária do sim ou não. Legislação complexa como a da reforma política exige maior discernimento que só um referendo pode propiciar', diz o comunicado.
O relator da reforma política na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), defende que sejam incluídos oito pontos no plebiscito, com foco nas questões consideradas urgentes. 'Nosso plano é fazer a negociação muito rápida para definir as perguntas porque o mais importante é que as eleições de 2014 sejam disputadas sob novas regras. Uma certeza é que o pior sistema político é o que temos, especialmente na questão do financiamento', disse o deputado.
Após as primeiras manifestações, Dilma avisou que estava disposta a promover uma Assembleia Constituinte para promover a reforma política. Vinte e quatro horas depois, no entanto, houve indicações de integrantes do governo de que não havia unanimidade em relação à proposta. Após reuniões com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o vice-presidente Michel Temer, e o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o governo anunciou a substituição da proposta da Constituinte pelas ideias do plebiscito ou referendo.
Edição: Graça Adjuto
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Agência Brasil

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Vitória das ruas: o que mudou após os protestos pelo Brasil

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Imagem 23/25: REDUÇÃO DE SALÁRIO DE PROFESSORES É CANCELADO: Menos de um mês após tirar dos professores da rede municipal uma gratificação que corresponderia a 40% dos salários, a prefeitura de Juazeiro do Norte (a 548 km de Fortaleza) não resistiu à pressão popular e voltou atrás Mais Normando Sóracles/Agência Miséria


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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Carlos Lessa: “A acelerada pedagogia das manifestações”

Fonte: OM - Carlos Lessa | 28 de junho de 2013

A qualidade da vida urbana é um ingrediente-chave na vida da maioria das famílias brasileiras. Com 80% de nossa população urbana e 50% metropolitana, são variadas as dimensões definidoras dessa qualidade. Entre essas dimensões, ocupa um lugar-chave a questão da mobilidade. De forma simplificada, podemos dizer que cada integrante da sociedade urbana dedica ao trabalho ou atividade remunerada um terço das suas 24 horas diárias. Outro terço é usado para dormir. Sobram oito horas diárias para todas as demais atividades que não a obtenção de renda monetária, isto é, para as atividades ligadas à fisiologia individual, à convivência e lazer com amigos e família, a compras e, por vezes, ao aperfeiçoamento cultural e profissional. Ao menos em tese, cada um é soberano em relação a este tempo de existir.
O tempo de existir é essencial e universalmente afetado pelos deslocamentos residência-trabalho-residência. Para quase todos, o tempo gasto nos deslocamentos é monótono, angustiante e, de certa forma, jogado fora, o que aponta para a óbvia importância da malha urbana, dos serviços de transporte público ligados ao deslocamento pela malha e à organização, tipo, quantidade e modalidades de utilização de veículos de transporte de pessoas e mercadorias. Mesmo quando o habitante que se desloca a pé em direção ao trabalho ou atividade, muitas vezes é obrigado a fazer outros deslocamentos que dependem da mobilidade urbana. Se o cidadão urbano, notadamente o pobre, tiver necessidade de horas adicionais no trabalho, é mais punido.
No Brasil, cresceu de forma explosiva a população de veículos automotores. Creio que, no Rio, andou próxima a 10% ao ano; em Brasília, por mais de uma década, cresceu cerca de 15% ao ano. Taxas parecidas foram vivenciadas nas demais cidades, inclusive nas médias. É o resultado de uma política míope que privilegiou, no combate à inflação, o corte do investimento público e, para sustentar a atividade econômica, facilitou e estimulou um intenso endividamento familiar. A opção governamental por estimular a venda de veículos – houve momentos em que a entrada zero foi combinada com o pagamento em 90 prestações – possibilitou à indústria automobilística um céu de brigadeiro nesta última década, porém o “nanismo” e a hipertrofia míope e de curto prazo do investimento na cidade engendrou o caos.
Muitos festejaram o acesso ao veículo automotor próprio, ignorando o custo do combustível, da manutenção e da fiscalidade associado ao “patrimônio” da posse do veículo. É comum a família endividada, pressionada pelos custos, deixar o veículo próprio estacionado e voltar ao péssimo transporte público. O pior acontece quando quer vender o veículo já usado e descobre que o mercado de segunda mão não paga sequer o correspondente à dívida residual. Por outro lado, o congestionamento tem uma dimensão universal, que incorpora desde o ônibus velho ao BMW. Somente escapa o arquimilionário que tem heliporto na residência e no escritório. Todas as faixas etárias e níveis de renda são incomodados pela degradação da qualidade de vida. Este pano de fundo tem tudo a ver com o início das manifestações.
O aumento das tarifas de transporte coletivo urbano foi gota d’água que produziu uma metamorfose espetacular. Uma novíssima geração de brasileiros foi para as ruas protestar e se situar como sujeito que faz história. O paradigma das antigas mobilizações foi estruturalmente modificado com a rapidez do uso de redes sociais. O tradicional “correio” boca-a-boca e alguma liderança convocatória não explicam a velocidade, intensidade e espacialidade com que o aumento tarifário se transformou num fenômeno político de massa que, rapidamente, preencheu um primeiro ato com uma gigantesca lista de rejeições, reclamações, sugestões e reivindicações. Sem a pretensão de interpretar esse fenômeno, quero colocar algumas questões para reflexão.
A questão urbana inspirou toda uma pauta que se iniciou no transporte e se encaminhou para os serviços de saúde, educação e segurança. A corrupção foi colocada como variável explicativa, e a pauta transbordou, colocando sob acusação o sistema de partidos, as representações políticas e algumas instituições públicas mais visíveis. A pauta cresce e tende a se diversificar. Lendo os cartazes, é possível perceber ânimo, ironia, amor, desinformação etc.
É surpreendente e sintomática a rejeição da ideia do “circo” substituindo o “pão”. O futebol, alegria do povo, foi colocado entre parêntesis. Desde a mutilação do Maracanã, no Rio de Janeiro (a reforma custou 1,2 bilhão de reais para reduzir à metade o número de lugares) passando pelo Mané Garrincha (que, em Brasília, foi iniciado com orçamento de 650 milhões de reais e custou 1,4 bilhão de reais) e com os demais estádios das cidades brasileiras sendo convertidos em “casas de ópera” (onde o povo brasileiro não pode mais torcer em pé e o povão terá que pagar uma entrada cara e proibitiva), cristalizou-se, pela visibilidade e interesse do povo brasileiro pelo futebol, a dimensão de corrupção (provável) e subserviência à FIFA.
O governo brasileiro abriu mão de sua soberania, ao autorizar a venda de bebida alcoólica à minoria que pode pagar ingresso; atropelou o espaço urbano atendendo à exigência da FIFA de uma circunferência de isolamento de três quilômetros em torno de cada estádio utilizado nos jogos da FIFA (essa exclusão foi anunciada pelo Ministério do Planejamento, quando propôs feriado no período dos jogos da FIFA, a partir da pergunta de como ficaria o congestionamento). O povo leu tudo isso como um imenso “conto do vigário”, que macula a paixão pelo futebol com renúncia à soberania e pretexto para processos de corrupção. O povo formou uma grande “torcida” participativa.
Sei que muitos manifestantes tem uma reflexão própria bastante amadurecida, e é interessante observar os “diálogos” dos cartazes, por exemplo: ao lado de um cartaz que diz; “imposto zero”, está outro que diz “mais verbas para a educação e saúde”. Os cartazes, em uma sociedade televisiva, são feitos e empunhados por muitos manifestantes com a óbvia preocupação de serem captados pela lente do fotógrafo e da televisão. Ilustra isso um cartaz em português e inglês, cujo autor afirmou que, assim, tinha maior probabilidade de ser captado pela TV internacional (o “eu”, corporificado no cartaz, está aqui; eu existo!).
Estou certo que haverá o debate e prevalecerá a vontade política da maioria. Estou certo que estas manifestações são apenas a primeira voz que apontará para um projeto nacional. Sei que esta é a provável evolução da novíssima geração de atores políticos brasileiros. A preliminar do “eu” tende a constituir o “nós”. Este resgate da participação pública, desde o início, está acompanhado pelos símbolos da nação: bandeiras, hinos, músicas.
A manifestação, no sentido operacional, é majoritariamente, uma “torcida” pelo Brasil, e tem uma componente saudável de festividade, como a linda a manifestação dos pais com seus bebês. É deslumbrante ver gente espontaneamente  fornecendo comida para os jovens que estavam acampados exigindo o diálogo com o Governador Sérgio Cabral, e também para os guardas que ali estavam bloqueando o acesso. Há um simbolismo na vinda de manifestantes da Rocinha com cartazes dizendo “queremos melhor ensino e saúde na comunidade” e “dispensamos o teleférico”.
Como velho professor, estou encantado em ver a novíssima geração representar nossa gente. Sou da geração que abriu os olhos políticos com o suicídio de Vargas e a campanha “O petróleo é nosso”; militei pelo novo Estado de direito desde o exílio e até a Constituição de 1988, e assisti sua mutilação por mais de 50 Emendas Constitucionais. Não aceitei o Consenso de Washington. Vi a ideia da “globalização” ser vendida como ensina um velho provérbio turco: “se quereis vender um corvo, pinte-o rouxinol”.
Tenho confiança na acelerada pedagogia das manifestações. É acelerada a educação política dos manifestantes. Um povo que se manifesta, no limite, tudo pode; transporta, dentro de si, um futuro melhor. Dentro do coração de cada manifestante há a potencialidade da civilização brasileira. Este é um passo decisivo para a periferia do mundo e o início de uma modificação significativa das relações geopolíticas do Brasil com a hispanoamérica e com a África. Um gigantesco passo para a história brasileira foi ensaiado com as manifestações convocadas pela má qualidade da vida urbana.
*Carlos Lessa é ex-reitor da UFRJ e ex-presidente do BNDES